(ao meu amigo José Cardoso Fontão, um dos militares de Abril)
Amigo Zé,
Remeto-te este desabafo em primeira mão, antes de o publicar no meu blog, pelo respeito e admiração que me mereces, na qualidade de (ex-) militar de carreira honesto e competente – o único que conheci com tais qualidades. Passámos alguns meses de sã camaradagem em Farim, no norte da Guiné-Bissau, em 1966-68, quando eu era alferes tesoureiro e tu capitão oficial de operações do Batalhão de Caçadores 1887. Ali tivemos a oportunidade de nos reconhecermos mutuamente como democratas, amantes da liberdade, e (naturalmente) opositores ao regime de partido único que vigorava então no país. Ali cimentámos também um relacionamento a nível de famílias, uma vez que eu, como sempre, desde sempre e até sempre, não vou para lado nenhum sem a minha mulher e, portanto, ela foi para a guerra comigo; a tua esposa também se reuniu a nós por algum tempo em Farim e assim os dois casais comungaram de uma camaradagem inesquecível.
Admirei a coragem e frontalidade com que assumias as tuas posições político-sociais e creio que tu nutrias a meu respeito iguais sentimentos. Como deves lembrar-te, os nossos longos serões na casa que eu e a Heather partilhávamos em Farim com mais 3 camaradas de armas, eram recheados de discussões políticas e temperados pelas canções de revolta que eu havia composto ao longo dos anos, mais aquelas que compus ali mesmo.
Bastante viajado e muito lido, eu alimentava a grande esperança de ver um dia o meu país funcionar em plena democracia, sem censura e sem limitações à liberdade individual e coletiva que não fossem aquelas naturalmente impostas pelos códigos de leis aprovadas pelos órgãos democráticos competentes.
Tinha participado ativamente da campanha presidencial do general Humberto Delgado e provado o sabor das cargas de cavalaria da GNR. Tinha estado envolvido, ainda que com certa desconfiança, nas agitações acadêmicas de 1962/63 em Lisboa. Participei mais tarde ainda mais ativamente das eleições legislativas de 1969, em que aceitei ser fiscal na minha assembleia eleitoral pela CEUD. Foi aí que comecei a perceber que havia elementos na oposição que mais não pretendiam do que substituir o regime fascista por um regime comunista e manter tudo o resto na mesma forma...
Todavia, pensava que o importante seria derrubar o regime e que o sistema multi-partidário se encarregaria de arrumar as pessoas segundo os seus ideais e partidos políticos que seriam submetidos regularmente à votação livre do povo.
No despontar do ano de 1974 não me parecia que aquele objetivo estivesse em vias de se tornar realidade. Na Assembleia Nacional, o grupo dos “liberais”, constituído principalmente por Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Mota Amaral e Alberto João Jardim, pouco ou nada conseguia fazer, dada a sua inferioridade numérica. Nas ruas, os movimentos de extrema esquerda pintavam paredes, semeavam bombas e faziam sabotagens a esmo, provocando a revolta do povo e não a sua adesão. Tudo levava a crer que o regime de partido único com quase 50 anos de existência iria eternizar-se no poder ad infinitum...
Fui, durante muitos anos, assinante da revista “Seara Nova” e comprava a maioria dos livros que aquela editora publicava, antes de serem apreendidos pela censura. Ali tomei conhecimento dos nomes e dos escritos de democratas e republicanos históricos, desde António Sérgio a Salgado Zenha, Sottomayor Cardia, Mário Soares, etc. Era, também, amigo de diversos jornalistas ligados ao jornal “A República”, cujo diretor, António Rego, muito admirava.
Jamais me havia passado pela cabeça que a instituição militar viesse a promover algum tipo de “reviralho”, dado o seu natural e histórico conservadorismo. Na realidade, o regime mantinha-se no poder precisamente graças ao apoio das Forças Armadas, cujo golpe de 28 Maio de 1926 tinha instituído a Ditadura Nacional que se mantinha até então no poder sob o nome de Estado Novo. Todos os Presidentes da República do regime, nomeados por escolha ou por eleições falseadas, tinham sido chefes militares: Gomes da Costa, Fragoso Carmona, Craveiro Lopes, Américo Tomás... O regime era uma criação militar e mantinha-se graças aos militares, a menos que...
A menos que alguma parte das Forças Armadas, agora infiltradas por milhares de oficiais e sargentos milicianos oriundos das camadas populares e acadêmicas, soltasse o “grito do Ipiranga” – o que me parecia um pouco utópico.
Foi então que, em Fevereiro de 1974, surgiu o livro “Portugal e o Futuro”, assinado pelo general António de Spínola. Fiquei sem fala! Não cheguei a conhecer o general Spínola na Guiné porque ele chegou lá para assumir o posto de Governador precisamente na ocasião em que eu regressei à Metrópole. Conheci somente o General Arnaldo Schultz, que foi Governador durante o meu período de comissão, e tive muito boas relações com ele.
Mas o livro de Spínola, que era o Vice-CEMFA, ou seja, o 2º mais alto responsável pelas Forças Armadas no país, parecia-me ser o gatilho que levaria ao fim do regime. Certamente que haveria seguidores para as suas ideias, pensei, dentro e fora das Forças Armadas.
Não me enganei. Tinha começado o processo irreversível que levaria à queda do regime por golpe militar dos “subalternos”, menos de dois meses depois. Não interessa esmiuçar quais os verdadeiros motivos, reivindicativos ou outros, que levaram aquele grupo a promover o golpe. O que interessa é que ele personalizou o anseio coletivo de um povo que queria soltar-se dos grilhões que há tanto tempo lhe tolhiam os movimentos.
Assim, sob o aplauso das multidões populares que invadiram as ruas, o regime caiu no dia 25 de Abril de 1974, sem qualquer tentativa de resistência. Caiu de velho, de podre, de inútil. Exultei de genuína alegria! Pensei que aquele iria ser o dia mais feliz da minha vida. E assim continuei pensando até que me apercebi de algo que jamais previra... e a minha ilusão terminou juntamente com a saída do general Spínola de Presidente da República, em Setembro de 1974.
Eu já tivera alguns sinais de que uma trama medonha se urdia pela calada contra o meu povo. Lembras-te, Zé Fontão, quando, poucos dias após o 25 de Abril, te fui visitar ao BC-5, cujo comando tinhas assumido? Talvez não te lembres, dado que andavas num rodopio para garantir o total sucesso do golpe militar. Mas, no decurso de um copo que tomámos rapidamente no Clube de Oficiais, tive ocasião de te dizer que estava surpreendido com o facto de que, agora que as barreiras pidescas e censórias estavam por terra, não encontrava nenhuma porta aberta para divulgar as dezenas de canções de intervenção que tinha composto ao longo dos anos. Um grupo auto-intitulado de “Canto-Livre”, constituído quase exclusivamente por refratários e desertores de extrema-esquerda, estava a monopolizar os meios de comunicação rádio-televisivos e os espetáculos públicos.
Procurei não dar demasiada importância a essa situação – que julgava transitória – e envolvi-me inteiramente na militância do Partido Socialista que, julgava preconizar o tipo de sociedade que eu ambicionava para Portugal. Ajudei a fundar o Centro de Trabalho de Santa Maria de Belém, juntamente com uma dúzia de camaradas. Participei de muitas lutas e resistência à tomada do poder pelos comunistas, que estiveram quase por um triz para conseguir os seus desígnios. Valeu-nos nessa ocasião o Jaime Neves, em homenagem a quem compus, na época, uma canção intitulada “Balada dos Comandos e dos comunas”, cujo refrão dizia:
“Vê, comuna, se te atreves
A enfrentar o Jaime Neves!”
Tive a ocasião de cantar pessoalmente esta balada ao Jaime Neves quando ele nos visitou no Parque de Campismo de Setúbal, onde eu passava os fins-de-semana.
Durante muitos meses assisti ao assalto aos sindicatos, à queda de todos os princípios de respeito e moralidade, à instituição da bandalheira por parte de TODAS as forças políticas em presença. Fui convidado para banquetes em herdades “ocupadas pelos trabalhadores” no Alentejo onde se esbanjava em um dia aquilo que demorara muitos anos a construir. Ah, como me vinha constantemente à memória a obra “Animal Farm” de George Orwell, e a inevitável comparação daqueles ocupadores da propriedade alheia com os porcos da novela. Igualzinho, caramba!
O PS tinha conseguido tomar de assalto (que era o que todos os partidos faziam) o Sindicato dos Profissionais de Escritório do Distrito de Lisboa (perdoa-me se o nome não está correto). O camarada que assumiu a presidência era nosso companheiro do Centro de Belém. Quando ele me lançou o convite “Zeca, traz a viola, vamos fazer um bacanal na sede do sindicato, com muitas garotas e muito whisky e champanhe na semana que vem”, eu fiquei perplexo. Tal como havia feito em relação às festas das herdades ocupadas afirmei “Mas isto era o que faziam os fascistas, nós não podemos ter esse tipo de comportamento!”. Porém, a resposta era sempre a mesma, qualquer que fosse a cor do pseudo-revolucionário inquirido, “Os fascistas não tinham o direito de fazer isto, mas nós estamos legitimados pela revolução, pela justiça revolucionária, pelo poder popular, pelo MFA e pelo PREC”. Cedo apresentei a minha demissão de militante do PS, principalmente após este ter ganho a primeira eleição livre e Mário Soares se ter revelado um péssimo primeiro ministro e formado um governo sem a mínima idéia de Estado.
Diversas pessoas, militares e civis, que eu conhecia e com quem privava, e que tinham sido reconhecidamente servidores e adeptos do regime fascista, fizeram repentinamente o que eles apelidaram de “opção de classe” e partiram cegamente à “caça dos fascistas”, usando de todas as torpezas e arbitrariedades, e desencadeando um processo que eles chamaram de “saneamento”, para derrubar pessoas, quase sempre as mais aptas e competentes, que se encontravam no seu caminho para o topo. O malfado CopCon de má memória foi um exemplo flagrante de como os militares podem destruir a Sociedade.
Assim se instituiu o reino da incompetência e da mediocridade que governa Portugal até hoje. A tentativa por parte de Sá Carneiro em 1980 de apresentar ao eleitorado uma alternativa de centro, foi premiada com um assassinato descarado. Todas as forças políticas abafaram o acontecimento como se estivessem envolvidas no atentado. Nunca fui capaz de compreender isto.
Quanto à chamada “descolonização exemplar”, nem vale a pena falar. Tratou-se de uma rendição incondicional com entrega do poder e do armamento a grupelhos comunistas sem o mínimo embasamento popular, que denegriu para sempre a imagem das nossas Forças Armadas e traiu a memória dos nossos irmãos que tombaram mortos em terras africanas ao longo de mais de uma dúzia de anos de conflito armado. Nuno Álvares Pereira levantou-se do túmulo e vomitou de desgosto e revolta. E as populações das ex-colónias “libertadas” envolveram-se em guerras civis infindáveis, por única e exclusiva culpa dos nossos políticos e militares.
Apesar de tudo isto, e apesar de a maioria dos membros da família terem abandonado o país para nunca mais voltar, eu continuei remando contra a corrente por mais de uma dúzia de anos, acreditando no milagre de uma mudança para melhor. Enganei-me redondamente.
Finalmente, sentindo-me traído e ludibriado, saí definitivamente do país no início de 1988.
Se alguma coisa lamento hoje, foram os anos estúpidos que passei em Portugal, desde finais de 1974 até Janeiro de 1988, apostando num cavalo coxo, dando a minha energia e criatividade como empresário e como cidadão para um projeto que somente visava os interesses mesquinhos e egoístas de uma classe de vigaristas e atrasados mentais que tomaram conta do país e o sugaram até o exaurir sem o mínimo respeito por nada nem por ninguém. Esses mesmos e os seus herdeiros encontram-se no poder ainda hoje e não parece haver como desalojá-los, uma vez que as novas gerações, vítimas de sistemáticas lavagens cerebrais, deixam-se cozer (como os sapos da anedota), com um sorriso nos lábios estupidificados, no caldeirão da incompetência nacional.
Por isso, meu amigo Zé Fontão, tenho o arrojo de perguntar-te, como representante do MFA que fez o golpe de 74: achas que valeu a pena?...
Um grande abraço!
Zeca
Remeto-te este desabafo em primeira mão, antes de o publicar no meu blog, pelo respeito e admiração que me mereces, na qualidade de (ex-) militar de carreira honesto e competente – o único que conheci com tais qualidades. Passámos alguns meses de sã camaradagem em Farim, no norte da Guiné-Bissau, em 1966-68, quando eu era alferes tesoureiro e tu capitão oficial de operações do Batalhão de Caçadores 1887. Ali tivemos a oportunidade de nos reconhecermos mutuamente como democratas, amantes da liberdade, e (naturalmente) opositores ao regime de partido único que vigorava então no país. Ali cimentámos também um relacionamento a nível de famílias, uma vez que eu, como sempre, desde sempre e até sempre, não vou para lado nenhum sem a minha mulher e, portanto, ela foi para a guerra comigo; a tua esposa também se reuniu a nós por algum tempo em Farim e assim os dois casais comungaram de uma camaradagem inesquecível.
Admirei a coragem e frontalidade com que assumias as tuas posições político-sociais e creio que tu nutrias a meu respeito iguais sentimentos. Como deves lembrar-te, os nossos longos serões na casa que eu e a Heather partilhávamos em Farim com mais 3 camaradas de armas, eram recheados de discussões políticas e temperados pelas canções de revolta que eu havia composto ao longo dos anos, mais aquelas que compus ali mesmo.
Bastante viajado e muito lido, eu alimentava a grande esperança de ver um dia o meu país funcionar em plena democracia, sem censura e sem limitações à liberdade individual e coletiva que não fossem aquelas naturalmente impostas pelos códigos de leis aprovadas pelos órgãos democráticos competentes.
Tinha participado ativamente da campanha presidencial do general Humberto Delgado e provado o sabor das cargas de cavalaria da GNR. Tinha estado envolvido, ainda que com certa desconfiança, nas agitações acadêmicas de 1962/63 em Lisboa. Participei mais tarde ainda mais ativamente das eleições legislativas de 1969, em que aceitei ser fiscal na minha assembleia eleitoral pela CEUD. Foi aí que comecei a perceber que havia elementos na oposição que mais não pretendiam do que substituir o regime fascista por um regime comunista e manter tudo o resto na mesma forma...
Todavia, pensava que o importante seria derrubar o regime e que o sistema multi-partidário se encarregaria de arrumar as pessoas segundo os seus ideais e partidos políticos que seriam submetidos regularmente à votação livre do povo.
No despontar do ano de 1974 não me parecia que aquele objetivo estivesse em vias de se tornar realidade. Na Assembleia Nacional, o grupo dos “liberais”, constituído principalmente por Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Mota Amaral e Alberto João Jardim, pouco ou nada conseguia fazer, dada a sua inferioridade numérica. Nas ruas, os movimentos de extrema esquerda pintavam paredes, semeavam bombas e faziam sabotagens a esmo, provocando a revolta do povo e não a sua adesão. Tudo levava a crer que o regime de partido único com quase 50 anos de existência iria eternizar-se no poder ad infinitum...
Fui, durante muitos anos, assinante da revista “Seara Nova” e comprava a maioria dos livros que aquela editora publicava, antes de serem apreendidos pela censura. Ali tomei conhecimento dos nomes e dos escritos de democratas e republicanos históricos, desde António Sérgio a Salgado Zenha, Sottomayor Cardia, Mário Soares, etc. Era, também, amigo de diversos jornalistas ligados ao jornal “A República”, cujo diretor, António Rego, muito admirava.
Jamais me havia passado pela cabeça que a instituição militar viesse a promover algum tipo de “reviralho”, dado o seu natural e histórico conservadorismo. Na realidade, o regime mantinha-se no poder precisamente graças ao apoio das Forças Armadas, cujo golpe de 28 Maio de 1926 tinha instituído a Ditadura Nacional que se mantinha até então no poder sob o nome de Estado Novo. Todos os Presidentes da República do regime, nomeados por escolha ou por eleições falseadas, tinham sido chefes militares: Gomes da Costa, Fragoso Carmona, Craveiro Lopes, Américo Tomás... O regime era uma criação militar e mantinha-se graças aos militares, a menos que...
A menos que alguma parte das Forças Armadas, agora infiltradas por milhares de oficiais e sargentos milicianos oriundos das camadas populares e acadêmicas, soltasse o “grito do Ipiranga” – o que me parecia um pouco utópico.
Foi então que, em Fevereiro de 1974, surgiu o livro “Portugal e o Futuro”, assinado pelo general António de Spínola. Fiquei sem fala! Não cheguei a conhecer o general Spínola na Guiné porque ele chegou lá para assumir o posto de Governador precisamente na ocasião em que eu regressei à Metrópole. Conheci somente o General Arnaldo Schultz, que foi Governador durante o meu período de comissão, e tive muito boas relações com ele.
Mas o livro de Spínola, que era o Vice-CEMFA, ou seja, o 2º mais alto responsável pelas Forças Armadas no país, parecia-me ser o gatilho que levaria ao fim do regime. Certamente que haveria seguidores para as suas ideias, pensei, dentro e fora das Forças Armadas.
Não me enganei. Tinha começado o processo irreversível que levaria à queda do regime por golpe militar dos “subalternos”, menos de dois meses depois. Não interessa esmiuçar quais os verdadeiros motivos, reivindicativos ou outros, que levaram aquele grupo a promover o golpe. O que interessa é que ele personalizou o anseio coletivo de um povo que queria soltar-se dos grilhões que há tanto tempo lhe tolhiam os movimentos.
Assim, sob o aplauso das multidões populares que invadiram as ruas, o regime caiu no dia 25 de Abril de 1974, sem qualquer tentativa de resistência. Caiu de velho, de podre, de inútil. Exultei de genuína alegria! Pensei que aquele iria ser o dia mais feliz da minha vida. E assim continuei pensando até que me apercebi de algo que jamais previra... e a minha ilusão terminou juntamente com a saída do general Spínola de Presidente da República, em Setembro de 1974.
Eu já tivera alguns sinais de que uma trama medonha se urdia pela calada contra o meu povo. Lembras-te, Zé Fontão, quando, poucos dias após o 25 de Abril, te fui visitar ao BC-5, cujo comando tinhas assumido? Talvez não te lembres, dado que andavas num rodopio para garantir o total sucesso do golpe militar. Mas, no decurso de um copo que tomámos rapidamente no Clube de Oficiais, tive ocasião de te dizer que estava surpreendido com o facto de que, agora que as barreiras pidescas e censórias estavam por terra, não encontrava nenhuma porta aberta para divulgar as dezenas de canções de intervenção que tinha composto ao longo dos anos. Um grupo auto-intitulado de “Canto-Livre”, constituído quase exclusivamente por refratários e desertores de extrema-esquerda, estava a monopolizar os meios de comunicação rádio-televisivos e os espetáculos públicos.
Procurei não dar demasiada importância a essa situação – que julgava transitória – e envolvi-me inteiramente na militância do Partido Socialista que, julgava preconizar o tipo de sociedade que eu ambicionava para Portugal. Ajudei a fundar o Centro de Trabalho de Santa Maria de Belém, juntamente com uma dúzia de camaradas. Participei de muitas lutas e resistência à tomada do poder pelos comunistas, que estiveram quase por um triz para conseguir os seus desígnios. Valeu-nos nessa ocasião o Jaime Neves, em homenagem a quem compus, na época, uma canção intitulada “Balada dos Comandos e dos comunas”, cujo refrão dizia:
“Vê, comuna, se te atreves
A enfrentar o Jaime Neves!”
Tive a ocasião de cantar pessoalmente esta balada ao Jaime Neves quando ele nos visitou no Parque de Campismo de Setúbal, onde eu passava os fins-de-semana.
Durante muitos meses assisti ao assalto aos sindicatos, à queda de todos os princípios de respeito e moralidade, à instituição da bandalheira por parte de TODAS as forças políticas em presença. Fui convidado para banquetes em herdades “ocupadas pelos trabalhadores” no Alentejo onde se esbanjava em um dia aquilo que demorara muitos anos a construir. Ah, como me vinha constantemente à memória a obra “Animal Farm” de George Orwell, e a inevitável comparação daqueles ocupadores da propriedade alheia com os porcos da novela. Igualzinho, caramba!
O PS tinha conseguido tomar de assalto (que era o que todos os partidos faziam) o Sindicato dos Profissionais de Escritório do Distrito de Lisboa (perdoa-me se o nome não está correto). O camarada que assumiu a presidência era nosso companheiro do Centro de Belém. Quando ele me lançou o convite “Zeca, traz a viola, vamos fazer um bacanal na sede do sindicato, com muitas garotas e muito whisky e champanhe na semana que vem”, eu fiquei perplexo. Tal como havia feito em relação às festas das herdades ocupadas afirmei “Mas isto era o que faziam os fascistas, nós não podemos ter esse tipo de comportamento!”. Porém, a resposta era sempre a mesma, qualquer que fosse a cor do pseudo-revolucionário inquirido, “Os fascistas não tinham o direito de fazer isto, mas nós estamos legitimados pela revolução, pela justiça revolucionária, pelo poder popular, pelo MFA e pelo PREC”. Cedo apresentei a minha demissão de militante do PS, principalmente após este ter ganho a primeira eleição livre e Mário Soares se ter revelado um péssimo primeiro ministro e formado um governo sem a mínima idéia de Estado.
Diversas pessoas, militares e civis, que eu conhecia e com quem privava, e que tinham sido reconhecidamente servidores e adeptos do regime fascista, fizeram repentinamente o que eles apelidaram de “opção de classe” e partiram cegamente à “caça dos fascistas”, usando de todas as torpezas e arbitrariedades, e desencadeando um processo que eles chamaram de “saneamento”, para derrubar pessoas, quase sempre as mais aptas e competentes, que se encontravam no seu caminho para o topo. O malfado CopCon de má memória foi um exemplo flagrante de como os militares podem destruir a Sociedade.
Assim se instituiu o reino da incompetência e da mediocridade que governa Portugal até hoje. A tentativa por parte de Sá Carneiro em 1980 de apresentar ao eleitorado uma alternativa de centro, foi premiada com um assassinato descarado. Todas as forças políticas abafaram o acontecimento como se estivessem envolvidas no atentado. Nunca fui capaz de compreender isto.
Quanto à chamada “descolonização exemplar”, nem vale a pena falar. Tratou-se de uma rendição incondicional com entrega do poder e do armamento a grupelhos comunistas sem o mínimo embasamento popular, que denegriu para sempre a imagem das nossas Forças Armadas e traiu a memória dos nossos irmãos que tombaram mortos em terras africanas ao longo de mais de uma dúzia de anos de conflito armado. Nuno Álvares Pereira levantou-se do túmulo e vomitou de desgosto e revolta. E as populações das ex-colónias “libertadas” envolveram-se em guerras civis infindáveis, por única e exclusiva culpa dos nossos políticos e militares.
Apesar de tudo isto, e apesar de a maioria dos membros da família terem abandonado o país para nunca mais voltar, eu continuei remando contra a corrente por mais de uma dúzia de anos, acreditando no milagre de uma mudança para melhor. Enganei-me redondamente.
Finalmente, sentindo-me traído e ludibriado, saí definitivamente do país no início de 1988.
Se alguma coisa lamento hoje, foram os anos estúpidos que passei em Portugal, desde finais de 1974 até Janeiro de 1988, apostando num cavalo coxo, dando a minha energia e criatividade como empresário e como cidadão para um projeto que somente visava os interesses mesquinhos e egoístas de uma classe de vigaristas e atrasados mentais que tomaram conta do país e o sugaram até o exaurir sem o mínimo respeito por nada nem por ninguém. Esses mesmos e os seus herdeiros encontram-se no poder ainda hoje e não parece haver como desalojá-los, uma vez que as novas gerações, vítimas de sistemáticas lavagens cerebrais, deixam-se cozer (como os sapos da anedota), com um sorriso nos lábios estupidificados, no caldeirão da incompetência nacional.
Por isso, meu amigo Zé Fontão, tenho o arrojo de perguntar-te, como representante do MFA que fez o golpe de 74: achas que valeu a pena?...
Um grande abraço!
Zeca
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